terça-feira, setembro 26, 2006

Ouço


1º de abril de 2.002.

Logo cedo, após os primeiros e obrigatórios afazeres, fiquei só. Lembrei-me que estava no primeiro dia de abril e meu primo veio à minha memória. Já se farão dez anos da sua morte. Senti saudades. Depois dessa lembrança veio a imagem do meu avô. Coincidentemente encontrei um quadro em que aparecem eu e meu tio Edu. Meu tio lembra-me muito meu avô. Percebi também que meus ouvidos estavam atentos. O quase silêncio daquela hora da manhã instigou em mim um desejo de não ir trabalhar, o desejo de ir a um parque, deitar na grama, utilizar muito o sentido da audição. Ouvir folhas balançadas pelo vento, ouvir pássaros, ouvir de longe palavras que me seriam incompreensíveis. Mas eu não podia tirar o dia, ignorar compromissos. Mais tarde, quando saí de casa, ainda permanecia com a audição atenta. Engraçado, eu nunca havia colocado esse sentido em primeiro lugar enquanto andava pela rua. Dia diferente... Momentos diferentes... Sensações diferentes...

quarta-feira, setembro 20, 2006

Em meio a tempestade...


25 de março de 2.002.

Já nem me lembro se são três ou quatro finais de semana sem descanso. Primeiro foram fechamentos de materiais. Depois os eventos. O primeiro, para mim, foi stress, apesar de durar somente dois dias. O segundo, que ainda está por acabar, foi falta de pernas. Não é fácil, para quem é rato de escritório, ficar dias em pé. Talvez o cansaço tenha sido o ladrão dos meus pensamentos. Estou louco para escrever, porém vazio de idéias. Lembrei-me da minha última paixão. Sumiu do mapa. No também vazio do meu peito sobra lugar para um amor. Ontem surgiu uma paquerinha de leve. Será mais uma Claudia na minha vida? Se for, que não seja como a primeira. Em casa já não há diálogo. Palavras trocadas são somente as essenciais. A maioria por telefone. Ligou-me hoje, mais uma vez, meu instável perseguidor. Não sei se desta vez me fará alguma proposta mais concreta, coisa que ele rascunha há alguns bons anos. É esperar para ver e avaliar. Será que desta vez vem o desenho? Marcamos um almoço para quarta-feira...

sexta-feira, setembro 15, 2006

Sensação de suspense


19 de março de 2.002.

Aconteceu no domingo, dia dezessete. Eu tinha um compromisso e havia marcado um encontro na estação Vila Madalena do metrô às oito e trinta da manhã. Saí de casa tranqüilo, camisa social de mangas compridas, apesar do calor. Aliás, diga-se, a temperatura prometia subir ainda mais. Viajei pela linha azul até a estação Ana Rosa e mudei de trem para a linha verde. Não me lembro muito bem da seqüência das estações mas, quando chegamos à ante-penúltima do meu destino, o vagão esvaziou. A princípio não me dei conta. As portas do trem se fecharam e mais um trecho começou a ser seguido. Quando levantei a cabeça é que vi: eu estava sozinho. A velocidade do trem pareceu-me muito maior. Olhei para a esquerda, olhei para a direita. Olhei para frente. As paredes corriam pelo lado de fora das janelas. Olhei novamente para a esquerda e para a direita. Senti solidão. Senti abandono. Experimentei um sentimento de suspense. Parecia que algo iria acontecer. Eu não sabia bem o quê. Talvez uma batida, talvez uma invasão de seres estranhos, talvez uma rajada de vento forte, destruidora. Não havia pessoas senão eu. Parecia haver espíritos comigo. Coisa pesada. Meio assustadora. Senti-me dentro de um filme.
O trem parou na penúltima estação. Sumaré. Na plataforma ninguém. Ninguém entrou. As portas se fecharam mais uma vez. Mais um trecho. Mais sensações de suspense. Mais velocidade, paredes correndo lá fora. Mais sentimentos estranhos. É meio inexplicável o que senti... Chegou a Vila Madalena. Desci. Enquanto caminhava pela plataforma, subindo depois as escadas rolantes, senti um desejo estranho de repetir a experiência, sentir as mesmas sensações. Talvez eu repita qualquer dia. Talvez eu fotografe o vazio. Pena que fotos não revelem a plena realidade. Pena que fotos não traduzam sensações...

Profissão: Pedinte


12 e 13 de março de 2.002.

Quando vi o homem pela primeira vez foi numa das esquinas próximas de onde moro. Fica sempre na calçada oposta ao lado em que param os carros no semáforo. Roupas e cabelos desarrumados, sandália nos pés, fisionamia sofrida. Quando param os carros vem de mansinho, respeita uma distância considerável do motorista, curva-se em sinal de respeito e estende uma das mãos enquanto com a outra tira um boné da cabeça. Só se aproxima quando está certo de que o motorista vai lhe dar algum dinheiro. No dia seguinte a esta primeira vez que o vi já não estava na esquina. Sumiu. Num outro dia, talvez a uma distância de dois ou três quilômetros do primeiro ponto, lá estava ele. Mesmas atitudes, mesmos gestos. Num final de tarde de um outro dia qualquer, passei a pé por aquela primeira esquina. O homem havia voltado. Observei, enquanto ele andava entre os carros e longe deles, com aquele respeito que mencionei, que na calçada, encostada num vão de parede, havia uma mochila. Meio velha, é certo, e com um cobertor bem dobrado sobre ela. Era dele, sem dúvida. Quando o semáforo abriu e ele retornou para o outro lado da rua, ficou ali, ao lado dela, enquanto aguardava o próximo sinal vermelho para o trânsito. Nos dias seguintes observei a mesma ausência. Volta de vez em quando, sem período certo para o mesmo lugar. No sábado passado, por volta das 14 horas, sentei-me para comer alguma coisa numa lanchonete perto de casa. Estava sozinho. O calor estava forte, ótimo para um choppinho. Fiquei por ali algum tempo, meio distraído com o que pedi para comer, com um jornal que comprei, olhando o movimento das pessoas de vez em quando. Já quase levantando-me para ir embora, surge o pedinte. Trajava as mesmas roupas lá da esquina, que na verdade não são tão sujas nem tão limpas, cabelos desajeitados, mochila na mão. Entrou de peito estufado, cigarro Marlboro zero quilômetro na mão, um maço de dinheiro, fisionomia aparentemente feliz, de bem com a vida. Não sei o que comeu, não sei o que bebeu. Mas estava ali, com postura normal de qualquer cidadão (como realmente o é). Fiquei pensando: é um pedinte profissional. Fora de seus locais de trabalho é pessoa normal, apenas mal vestido e meio sujo. Deve ser bem informado, saber da crise de violência que sofre o país, do medo quase generalizado das pessoas. O não aproximar-se dos carros é uma forma de sinalizar ao motorista que ele não representa qualquer risco ou perigo. Consome bons produtos: o cigarro não é dos mais baratos, a lanchonete a que me referi não é qualquer padaria ou boteco. Muda de ponto a cada dia. Parece ter um roteiro bem planejado. Para quem só passa correndo em sua rotina diária o pedinte passa desapercebido. Passa como apenas mais um em apenas mais um semáforo. Figura interessante...