terça-feira, agosto 08, 2006

Vida de adulto


9 de fevereiro de 2002.
Quando ainda somos crianças não enxergamos muitas coisas. Não entendemos a profundidade de coisas que os adultos nos dizem. Não aceitamos que muitos dos nossos momentos de traquinagem vão terminar mal como os mais velhos nos alertam. Quando ainda somos crianças somos mais felizes. Não temos tantas preocupações e desilusões. A solidão não é sentida. Qualquer outra criança é um amigo com quem podemos conversar, rir, brincar, brigar e logo fazer as pazes... Em algum momento, porém, temos que virar adulto. Quantas saudades dos velhos tempos, dos famosos "anos que não voltam mais"! Hoje coloco aqui um texto maravilhoso de um cara que adoro ler...
Felizes de mentirinha
Um garoto, uma foto e o fim da inocência Fabio Hernandez, revista VIP, dezembro de 2000. Aqui estou diante de mim mesmo. Uma foto antiga, que minha mãe mandou ampliar e me deu de presente. (Já falei que minha mãe, em seu português severo e escorreito, fala copázio de Nescau e não copão?) Um mestre zen recomenda que todos tenhamos perto de nós uma foto de quando éramos crianças. Para tentar recobrar a pureza, a inocência, o contentamento da infância. Vejo a foto. Branco e preto, como os filmes de Woody Allen. Alguém disse a minha mãe, se não me engano, que hoje seria possível dar cores à foto. Minha mãe teve a sabedoria de mantê-la em branco e preto. Cabe à minha imaginação colorir tudo. Tenho 13 ou 14 anos. Estou subindo a rua da minha casa, na Rua José Rubens, 117. Todo mundo tem o endereço de sua vida. Aquele é o meu. José Rubens, 117. Venho de um jogo de futebol. As meias grandes de jogador ali estão. Carrego uma malinha na qual presumo que estivesse minha roupa extracampo. Tênis preto de bico branco, calção claro e camisa aberta. Cabelos claros, penteados da esquerda para a direita. Um corpo de menino. Nem um pêlo em meu peito magro ou em meu rosto. E as pernas finas de quem está apenas no começo da trajetória. Estou diante da casa da Dona Rute. Dona Rute tinha nariz adunco e voz estridente. Vendia pequenas coisas em sua casa: cola, vareta, seda para papagaios. (Chamávamos de quadrados.) Era parteira. Nasci, numa noite de maio cuja hora minha mãe jamais soube precisar quando quis encomendar mapas astrais, pelas mãos da Dona Rute. Era mais velha que o Seu Zé, seu marido, um homem careca, meio gordo, bigodudo. Eu jogava de vez em quando xadrez e futebol de botão com Seu Zé. (A bolinha era o feltro amassado de um maço de cigarros.) A última lembrança que tenho do Seu Zé é ele empurrando a cadeira de rodas da Dona Rute. Reumatismo, velhice, uma combinação de ambos? Não lembro. Mas é uma imagem terna, que de alguma forma ainda hoje, tantos anos e tantas mortes depois, incluída a do velho casal vizinho, me comove. O verdadeiro amor é aquele que conduz uma cadeira de rodas. Esse pensamento tolo me ocorre agora.
Felizes de mentirinha
Virgem. Eu era virgem naquela foto, e ainda seria durante um bom tempo. Sexo, a miséria e a glória do sexo, seus prazeres e tormentos, tudo isso estava ainda muito adiante de mim. Virgem no corpo, virgem na alma, como mostra a foto. O meu mundo se resumia aos amigos, que se reuniam naquela esquina de que se vê um pequeno pedaço na foto, a uma bola de futebol e à escola. Isso e a família. Nada complicado, sobretudo mulheres. Eu dormia o sono dos virgens, o sono dos puros. Só muito tempo depois entrariam em minha vida noites aflitas, sobressaltadas, duramente enfrentadas com calmantes. Vejo mais uma vez aquele menino subindo a rua e, como sugere o mestre zen, tento encontrar algo dele em mim. Ou reencontrar. Rendo um tributo sincero e tocado ao fotógrafo anônimo que registrou a imagem do fim dos dias de inocência para aquele garoto. Perguntei a minha mãe quem fotografara. Ela disse que fora o Seu Zé, mas jamais vi o Seu Zé com uma máquina nas mãos. Meu pai? Meu irmão, que eu esmagava no futebol e hoje me esmaga no tênis? Minha irmã? Não, minha irmã devia estar no violão, ela que tinha a voz mais linda do mundo. Talvez algum amigo da família.
E ali estou eu, subindo a rua da minha infância perdida. Por que o mestre zen pede um reencontro tão difícil, Deus? Sou eu, mas ao mesmo tempo não sou eu. O olhar. Mas mais que tudo o sorriso. Meus sorrisos nas fotos de adulto são solicitados. Ou eu mesmo tomo a iniciativa de fabricá-los. Felizes de mentirinha, a melhor forma de felicidade. É uma frase da peça Anjos da América. (Não lembro se era esse mesmo o nome da peça.) Felizes de mentirinha. Não, não aquele menino ali. O sorriso veio de dentro, irrompeu como uma doce brisa do coração e tomou seu rosto claro, sem que ninguém o chamasse. E, na tentativa patética do reencontro, me pergunto onde foi que me perdi de mim.