quinta-feira, agosto 03, 2006

Espanhola



8 de fevereiro de 2002.

Ontem eu estava triste. Pensando no momento não havia motivo aparente. Era um sentimento de solidão. Talvez somente isso. Pensando, porém, mais profundamente, é claro que há motivos. São coisas que vão se acumulando durante horas, durante dias, durante anos muitas vezes. E sempre chega um momento em que nos sentimos sós. Eu precisava de um carinho, de um afago na cabeça, de olhos me olhando, de mãos me tocando, de ouvidos me ouvindo, de lábios falando comigo e jogando-me sorrisos. Olhos também sorrindo. Se as palavras fossem tristes eu precisaria de lágrimas cúmplices que acompanhassem as minhas. E me lembrei de uma paixão que não foi fisicamente correspondida. Talvez sim emocionalmente, sentimentalmente correspondida. Talvez também não. Talvez um dia eu saiba responder a essa dúvida. Nada ocorreu de fato porque houve medo. Muitos pensamentos, muita voz da razão antes de qualquer entrega emocional. Não deixamos, eu e ela, a "coisa de pele", o fogo do desejo nos levar. E ela um dia se foi. Talvez nem se lembre mais dos dias de desejo que tivemos, das palavras e dos olhares que trocamos, das confidências que nossos ouvidos ouviram. Bom, passou. Um dia tive um sonho. O sonho eu escrevi. Guardei. Já que toquei no assunto vai aí abaixo o sonho que tive, o texto que escrevi... Somente os nomes são fictícios. Quem sabe um dia ainda encontro meu amor. Pode até não ter nada que se relacione ao sonho, mas que seja um amor...

2 de Julho de 1999.
Espanhola

Freddy a viu à meia distância. Meia mais para perto do que para longe. Seu olhar era calmo... inocente... negro... profundo... carente... tímido... Seu rosto inclinava-se para sua esquerda, queixo para baixo. Como de uma santa. Seus cabelos castanhos claros corriam-lhe até o meio das costas. Estavam presos formando uma nobre coroa. Seu nariz foi cuidadosamente desenhado. Fino, ou melhor, no ponto. Seu rosto suave mostrava sardas que corriam-lhe também pelo peito, acima dos seios. Seus lábios eram perfeitos e delicadamente carnudos. Suas sobrancelhas ajustavam-se à cor de seus cabelos, mais para grossas.
Seu olhar logo encontrou o de Freddy. Imediatamente abriu-se um maravilhoso sorriso. Branco, retilíneo. Foi o puxar de um gatilho para a explosão interna de Freddy... Foi algo quase inexplicável. Como que um fogo subiu-lhe à pele. Seus pêlos arrepiaram-se. O coração tremeu como se colocado repentinamente em algum lugar da Antártida. Um sorriso de resposta foi o que chegou à sua face. "Quem era?", perguntava-se. "Quem era?" Passaram-se apenas alguns segundos. E ela levantou-se. Um metro e cinqüenta e cinco. Trajava uma roupa simples. Uma camiseta curta, mangas bufantes e curtas que pareciam amarradas em seus braços. Os detalhes eram rabiscos. A cor tendia a areia. O decote era como a letra primeira do alfabeto, cabeça para baixo. Seus braços foram moldados suavemente. Sua pele era lisa, morena, clara. Seus seios vislumbravam os quadros e formavam curvas cuiadosas... As mãos eram suaves, lindas como as que são contratadas para propaganda. Sua cintura era fina, deliciosamente chamando para um abraço... A calça que ela vestia era justa. Contornava seus quadris e pernas com o merecido carinho. Estes foram esculpidos com ausência de relógio. O autor tivera todo o tempo do mundo. Importava apenas que nenhuma imperfeição existisse... E os pés, trinta e cinco no máximo, delicados, calçavam sandálias de corda. Seu andar era calmo, gracioso. O sorriso e o fixo olhar em Freddy não saíam-lhe do rosto... Freddy respirou fundo. Na mente passava-lhe um vazio, nem pó. Veio-lhe somente uma expressão, inexplicável inclusive: "Espanhola..." Ela logo chegou. Encostou seu corpo no de Freddy. O rosto de forma a buscar o mais profundo do olhar contrário, narizes encontrando-se num leve toque. Virou-se para que ele desse-lhe um abraço por trás, segurando-lhe a cintura... Sua pele era quente. Arrepiante. Lisa como seda. As mãos de Freddy deslizaram com cuidado. E com carinho. "Como é o seu nome?", foi só o que pôde balbuciar Freddy ao seu ouvido... Ela lançou-se a beijar-lhe a boca. Ardente. Molhado. Respondeu num sussurro, em espanhol, "Marccella". "Tchéla é lindo...", passou rápido pela mente de Freddy. "Marccella, meu sonho... Espanhola..." Acordou no dia seguinte e logo cedo tinha que sair. Ir ao centro da grande cidade. A memória pulsava parecendo inflamar todo seu corpo. O rosto de Marccella não o abandonava em momento algum. Saiu. Caminhou, tomou o transporte coletivo, sentou-se, leu algumas páginas do livro que empunhava, caminhou novamente. Com os olhos procurou Marccella entre as centenas de rostos que viu. Olhou corpos também. Não a encontrou. Ele imagina que ela existe. Idêntica ao que viu e tocou em sonhos... O homem pode sentar-se, papel e lápis nas mãos, e desenhar. Qualquer traço: forte ou fraco, bruto ou suave, que levam ao feio ou ao bonito... Ele certamente desenhará alguém que existe... Em algum lugar, mas existe. Deus, ao criar, fez isso... O que torna-se para o homem uma ficção, em algum lugar do mundo é real... O sonho de Freddy existe. Somewhere...